COLUNA ATIVISTA

Democracia e eleições 2018: mapeando as crises, as tendências e os paradoxos

Por Josué Medeiros

Nas sociedades capitalistas complexas, tal como é o caso do Brasil, eleições nacionais são sempre acontecimentos intensos, crivados de conflitos e com muitos significados. Seus sentidos são atravessados por dimensões econômicas, sociais, culturais, institucionais; seus processos mobilizam classes e frações de classe, grupos sociais diversos tais como mulheres, juventude, negras e negros; suas dinâmicas ocorrem em territórios diversos tais como bairros, escolas e universidades, cidade e campo, regional e global; por fim, mas não menos importante, a dimensão temporal é sempre diacrônica e sincrônica. Em política – não só no processo eleitoral, mas também nele – os múltiplos tempos de uma sociedade se condensam e interpelam quem age.

Eleições importam, portanto. A partir delas podemos compreender as tendências que uma sociedade apresenta e até mesmo que um conjunto de nações vive. Podemos concluir pelo começo ou fim de um ciclo, se há continuidade de maiorias ou se novas hegemonias se estabelecem, se novas pautas, demandas, linguagens e formas de organização se impõe ou se as energias mais consolidadas e já institucionalizadas conseguem manter suas posições. Em suma, pactos entre classes e grupos sociais e modos de dominação têm nas eleições um evento fundamental de constituição e legitimação.

O objetivo desse texto é fazer um mapeamento de algumas das principais disputas e sentidos que compõem a cena das eleições de 2018. Do ponto de vista analítico, divido essa cartografia em três conjuntos de conflitos e significados: crise (i), esquerda e direita (ii); renovação versus conservação (iii). Na prática, os três se sobredeterminam e se combinam. Separá-los, contudo, é crucial para que possamos visualiza-los e, consequentemente, enfrenta-los melhor desde um ponto de vista progressista.

 

Crise da democracia, crises sem fim

 

            Vivemos o encontro de duas crises profundas que atingem todo o mundo ocidental: a crise econômica, que explodiu em 2008, e a crise da democracia, que se desenvolve desde então. Para melhor explicar essa convergência faz necessário apresentar uma definição mínima do que é democracia. Para esse texto, não se trata de buscar definições conceituais ou institucionais, mas sim voltar ao processo histórico ocorrido na Atenas dos séculos V e IV ac, no qual a democracia, em sua forma direta, foi inventada.

De acordo com o historiador Moses Finley, a democracia foi resultado dos conflitos políticos e sociais que compunham o quadro não só de Atenas, mas do complexo arranjo de Cidade-Estado gregas, cuja maioria estava submetida ao domínio ateniense. Finley argumenta que os pobres se mobilizavam para fazer parte das decisões políticas com o objetivo de impor aos ricos os maiores custos pelo funcionamento da sociedade, o que significa dizer que eles lutavam por uma melhor distribuição de renda. Os ricos recebiam em troca uma enorme estabilidade política, a qual era indispensável para que Atenas seguisse dominante na geopolítica do Mediterrâneo, o que também ajudava a sustentar a sociedade ateniense. Firmou-se assim um pacto entre diferentes setores – Finley fala em pobres e ricos, não em classes – que permitiu que os modos de dominação econômica, cultural e política (incluindo a escravidão) permanecessem estabilizados por dois séculos. Mais igualdade trouxe mais estabilidade.

O encontro da crise econômica internacional com a crise da democracia liberal produziu um aumento gigantesco da desigualdade e da instabilidade, impondo, portanto, um sentido inverso ao da experiência histórica original da democracia grega. Nosso planeta caminha para uma distopia em que pactos entre ricos e pobres são inviabilizados pelos primeiros, ávidos por fortalecer seus privilégios, resultando em uma explosão de todos os tipos de violência e que sempre afetam as e os mais vulneráveis.

O primeiro paradoxo consiste justamente no uso da institucionalidade democrática para aprofundar a desigualdade, a instabilidade e a violência. No Brasil, essas crises se manifestam em três dimensões, quais sejam, o golpe de 2016; o desemprego/desigualdade; e o problema da segurança. É na elaboração de respostas para esses três eixos temáticos que a cisão esquerda e direita vai se constituir e com a última em franca e crescente ofensiva, o que apenas reforça os paradoxos e também as crises.

 

Esquerda e direita no Brasil em crise

 

            O pleito de 2018 consolida uma tendência de afirmação política da direita que se iniciou em 2010 (debate sobre o aborto) e que em 2014 se apresentou com mais força, ampliando seu espaço, não só na candidatura do PSDB, mas também no fato – com frequência subestimado – de que pela primeira vez tivemos um candidato a presidente evangélico. A direita formula uma resposta abrangente para as crises articulando as ideias de ordem, família e mérito, materializadas na imagem do “cidadão de bem”, arquétipo de um modelo de sociedade estável, cujo antagonista é imagem do “vagabundo”.

Trata-se de uma novidade em nossa recente democracia. Assistimos a uma defesa inédita da Ditadura Empresarial-Militar de 1964, defesa que reivindica, principalmente, o modo de operação política regime autoritário, no qual existiria um tipo de violência legítima contra os opositores em prol da defesa da ordem. Esta palavra retorna (junto com um crescente protagonismo dos militares) na simbologia do governo golpista liderado por Temer, na identidade do candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e na projeção dos valores conservadores por grande parte do movimento político evangélico.

Em segundo lugar, aparece revigorada a defesa do capitalismo. Não é a primeira vez, pois Collor foi eleito em 1989 defendendo a modernização capitalista neoliberal. Contudo, a questão dos pobres, do fim dos privilégios e da promoção da igualdade ocupava lugar central  no debate. Agora, há uma defesa de que a desigualdade é justa e desejável e, com isso, a ajuda aos pobres é deslegitimada enquanto ajuda aos vagabundos que não querem fazer nada e que consomem os recursos que são do cidadão de bem.

O terceiro elemento é a valorização de uma concepção de família comandada pelo homem – o cidadão de bem – como núcleo fundamental da sociabilidade. É na família que a ordem começa seu império e são os seus valores e estabilidade que impedem a proliferação do vagabundo. Os desvios devem ser exemplarmente punidos, e isso fecha

o círculo que legitima a violência enquanto modo de resolução dos conflitos: no campo valorativo que a direita alimenta, acabar com o vagabundo – personagem espantalho que concentra todos os males sociais – deve ser o principal objetivo da coletividade brasileira

O paradoxo aqui é evidente. O aumento da desigualdade leva a mais instabilidade. As pessoas que vivem essa dinâmica no cotidiano percebem – porque não são burras, ao contrário do que supõe parte da esquerda – que esse quadro é produzido pelas instituições. Voltam-se, portanto, contra o sistema. E somente quem dá resposta a isso é a própria direita pois às esquerdas cabe o ônus de defender a Constituição e a democracia, ou seja, as instituições que consubstanciam a crise. As esquerdas não podem abrir mão de defender os direitos e as liberdades, ambos identificados com as instituições democráticas. É um erro ler a rejeição antissistêmica da maioria como um convite a saídas extremadas na expectativa de espelhar um sucesso a lá Bolsonaro.

À esquerda, tal saída não tem como prosperar uma vez que os direitos e as liberdades precisam de instituições que as consolidem e defendam. Fora disso, só resta a força. Precisamos radicalizar em um projeto de combate às desigualdades, vinculando as liberdades civis e os direitos, a crise econômica e o desemprego, e também a crise da democracia a um programa que apresenta a igualdade como o nexo fundamental para uma sociedade estável e saudável. E, além disso, radicalizar na defesa da renovação das instituições como saída para as crises chegando, dessa maneira, na última tendência/paradoxo: a questão da renovação versus conservação na política

 

Renovação e conservação na democracia em crise

 

            O diagnóstico da crise de representação, apontado por algumas e alguns analistas desde as jornadas de junho de 2013 e rejeitado pela maioria das esquerdas, hoje é consensual. Tivemos desde então uma explosão do não voto – abstenção, votos brancos e nulos – sendo esta mais uma tendência global que chega ao Brasil. Sociedade civil e sistema político reagem de modo distinto a essa crise, o que ajuda a aprofundá-la. Assistimos a uma importante proliferação de movimentos que buscam organizar a crise de representação por fora dos partidos, mobilizando as pessoas para um engajamento direto na política, o que é majoritariamente criticado pelas esquerdas. Em parte, pela tradição positiva de valorização dos partidos. Em parte, contudo, por um tipo de arrogância que tende a classificar essas iniciativas como “de direita”, ou “vendidos”, sem uma análise mais fina dos sentimentos e energias que eles produzem. Há, todavia, tentativas de disputar a renovação pela esquerda, tais como as “Muitas” de Belo Horizonte, a “Bancada Ativista” e “Nós” de São Paulo, todas buscando se nacionalizar.

Já o sistema político se fecha em uma luta ferrenha por manter suas posições através de uma verdadeira contrarreforma política que fortaleceu o poder das cúpulas partidárias, e nisso reside o terceiro paradoxo das eleições de 2018. Quanto mais a rejeição à política se expande, mais os partidos se protegem, o que alimenta o não voto, a crise da democracia, o aumento da desigualdade, a instabilidade e a violência.

Nesse caso temos um ônus desnecessário assumido pela esquerda. A ideia de que não há saída por fora da política e da democracia é correta, porém vincular essa ideia ao sistema político realmente existente só enfraquece o campo que quer igualdade pois a abstenção cresce na mesma proporção em que os votos da esquerda diminuem.

É urgente, portanto, apostar em uma renovação das esquerdas e da política com ênfase no binômio mais igualdade e mais democracia, apresentando essa junção como a única forma de conter as violências materiais e simbólicas que solapam nossa solidariedade coletiva e de estabilizar novamente nossa sociedade com um projeto de futuro e em um pacto coletivo que forme uma nova maioria com diferentes setores sociais.