COLUNA ATIVISTA

(Ainda) Precisamos falar sobre o financiamento de campanhas

Maria Brant

No relatório A Privatização da Democracia: Um Catálogo da Captura Corporativa no Brasil, o Vigência lista diversos exemplos de decisões tomadas por políticos que privilegiam interesses privados em detrimento do interesse público, sendo que o financiamento de campanhas políticas é um dos principais fatores para essa distorção do processo democrático. Em setor após setor, políticos cujas campanhas foram financiadas por empresas votam a favor de legislação que as privilegie, ou contra leis que possam significar uma ameaça aos seus lucros, mesmo que sejam benéficas ao conjunto dos cidadãos do país. A chamada bancada ruralista, financiada pelo agronegócio, por exemplo, foi responsável pelo abrandamento da definição de trabalho escravo e pela anistia a desmatadores; representantes bancados pela indústria farmacêutica defendem a extensão de prazos de patentes, tornando medicamentos mais caros; e deputados e senadores financiados pela indústria de armas tentam reverter o Estatuto do Desarmamento.

Para evitar distorções como essas, diversos países proíbem o financiamento de campanhas por empresas e/ou adotam o financiamento público de campanhas políticas. O financiamento público assume diversos modelos, sendo que os fundos estatais podem ser alocados para atividades partidárias permanentes, apenas para campanhas eleitorais, ou ambos. Um estudo da organização International Idea (International Institute for Democracy and Electoral Assistance) que compila as políticas eleitorais de 180 países concluiu que 120 (68%) adotam algum tipo de financiamento público, sendo que 62 deles financiam campanhas com recursos públicos – os outros 58 proveem fundos apenas para atividades partidárias regulares.

A inversão de fundos públicos pode se dar de forma direta – ou seja, por meio da distribuição de recursos do orçamento público para partidos ou candidatos –ou indireta, por meio da concessão de incentivos fiscais, acesso subsidiado a tempo de rádio e televisão e outros. O financiamento pode ainda ser irrestrito ou limitar o uso que partidos e candidatos podem fazer do dinheiro recebido, restringindo-o a certas atividades, tais como educação para a cidadania e mobilização de jovens, como é o caso na Argentina. Além disso, a quantidade de recursos a ser alocada a cada partido ou candidato pode ser dividida igualmente entre todos ou estar atrelada ao número de cadeiras no Parlamento ou de votos recebidos nas eleições anteriores, sendo o arranjo mais comum uma mistura dos dois critérios, na qual uma determinada porcentagem dos fundos públicos é distribuída igualitariamente e, o resto, de acordo com os votos recebidos. Em outros países, tais como a Áustria, partidos recebem uma quantia fixa por voto recebido.

Um mecanismo especialmente importante para minimizar a influência desproporcional de determinados atores por seu poder econômico é o estabelecimento de tetos baixos para doações. Na França, por exemplo, é proibida a doação empresarial e permitida a doação individual até 4,6 mil euros para cada candidato ou 7,5 mil euros para cada partido por pessoa por ano. Os EUA permitem o financiamento empresarial desde 2010, mas alguns Estados adotam modelos mistos, chamados de clean elections ou fair elections. Pelo modelo, um candidato que receba um número mínimo de pequenas doações individuais tem direito a receber financiamento público para sua campanha. A ideia é fazer com que os políticos tenham que conseguir apoio de cidadãos e, depois de eleitos, prestar contas à sua base eleitoral, e não a algumas poucas empresas.

Cada um dos modelos de financiamento público traz vantagens e desvantagens. Em pelo menos 20 países europeus, mais da metade dos recursos dos partidos vêm do Estado, sendo que em países como Espanha, Bélgica e Itália, a proporção chega a 80%. Essa possibilidade de sobreviver apenas com fundos estatais tem sido apontada como culpada pelo distanciamento dos partidos de suas bases eleitorais – ou seja, por não necessitar de apoio de cidadãos ou grupos de interesse para sobreviver, os partidos não precisam levar em conta suas demandas, e nem prestar contas de suas ações depois de eleitos. Por outro lado, o financiamento público parece contribuir para ampliar a diversidade e melhorar representatividade do Legislativo e do Executivo e liberar políticos de defender interesses privados em seus mandatos. Um estudo realizado pela organização Demos sobre o impacto do sistema clean elections no Connecticut, por exemplo, concluiu que, desde que o financiamento público foi adotado:

– Os órgãos legislativos estaduais se tornaram mais representativos da população, tendo aumentado significativamente a proporção de latinos e mulheres eleitos;

-O número de doadores passou de um punhado para centenas – diluindo, portanto, os interesses a serem representados.

-A influência dos lobistas diminuiu. Um político entrevistado no estudo, por exemplo, disse que não se sente mais na obrigação de receber lobistas.

-Permitiu que os legisladores passassem mais tempo interagindo com eleitores, em vez de com financiadores;

-Contribuiu para a adoção de um número maior de leis de interesse público. Alguns exemplos de leis adotadas durante o mandato dos candidatos eleitos com financiamento público foram: aumento do salário mínimo; a adoção de licença médica remunerada; diminuição do valor das mensalidades universitárias a serem pagas por imigrantes sem documentos , entre outras.

Outra vantagem de utilizar recursos públicos para financiar campanhas é a possibilidade de condicionar a alocação de recursos a certos critérios sociais. Em países como Portugal, Irlanda, Itália e França, por exemplo, o Estado diminui os fundos a serem alocados se o partido não tiver lançado um número mínimo de candidatas mulheres. Na Suécia, partidos que receberem doações anônimas não são elegíveis para receber recursos públicos. Nos EUA, candidatos em Estados que adotam o sistema de fair elections só podem receber recursos públicos se abrirem mão de receber doações de empresas.

No Brasil, o financiamento empresarial de campanhas está suspenso desde o ano passado por decisão do STF, mas continua permitida a doação individual, de até 10% da renda anual pessoal do doador. O estabelecimento de um teto proporcional e não nominal faz com que donos de empresas, latifundiários e outros doadores ricos possam dedicar muito mais recursos do que eleitores comuns, fazendo com que permaneça a necessidade de candidatos negociarem com empresários e outros membros da elite. Além disso, continua permitido o financiamento com recursos próprios, até o limite de gastos definido pelo TSE – para as eleições de 2016, candidatos a vereador podem gastar até R$ 3,2 milhões, e o teto para os aspirantes a prefeito é de R$ 45 milhões no primeiro turno e R$ 13 milhões no segundo –favorecendo candidatos ricos. Alguns analistas preveem ainda que a proibição da doação empresarial, aliada aos recentes escândalos envolvendo doações de campanha, venha a favorecer candidatos ligados a fontes alternativas de financiamento, tais como igrejas, com larga base de fiéis, ou o crime organizado. As eleições municipais deste ano foram um importante experimento para avaliar os resultados da proibição do financiamento de campanhas por empresas privadas e, pelo menos em São Paulo, os temores de que as novas regras favoreceriam candidatos ricos parecem ter fundamento: dos 37 prefeitos eleitos no país no primeiro turno, 23 são milionários.

O que a experiência internacional parece demonstrar é que um sistema de financiamento misto, em que parte dos recursos venha do orçamento público e parte de doadores individuais, favorece o surgimento de candidaturas mais diversas e menos ligadas a determinados grupos econômicos, e, ao mesmo tempo, mais comprometidas com sua base eleitoral. O estabelecimento de tetos nominais baixos para doações também aparenta ser mecanismo crucial para pulverizar a base de financiamento e evitar que alguns poucos grandes doadores dominem o processo eleitoral.

Seja como for, para que possamos desprivatizar a democracia, é inescapável pensarmos em novos modelos de financiamento de campanhas eleitorais. Além disso, para contermos a influência desproporcional do público sobre o privado, não é suficiente nos limitarmos a soluções institucionais: algumas das experiências mais interessantes de radicalização da democracia começaram localmente, caso do orçamento participativo de Porto Alegre, ou, mais recentemente, do municipalismo espanhol. Esperamos que o novo quadro de vereadoras e vereadores, a tomar posse em janeiro próximo, seja também protagonista de mudanças que nos tragam de volta a cidade como bem público.

 

Maria Brant é militante do Vigência!

Foto: Pedro França / Agência Senado.